Hoje, distraidamente olhando minha garotinha, ocorreram-me lances do passado, rotulei o presente e fiz perquirições acerca do futuro. Com menos de dois anos de idade, não se adapta ao gorro que sua mãe lhe põe para protegê-la da friagem ou para enfeitar. Tira-o quantas vezes lhe é colocado. Lembro que daqui mais um tempo lhe contarei estórias. E eu mesmo viajo nas que me contavam. Serei fiel no que contar? Subtrairei trechos ou tudo de velho, criando o novo? Acrescentarei ao antigo? Interpretarei? (“Quem conta um conto aumenta um ponto”). O momento de mim, o costume ou algum fator latente ditará a fórmula.
Seu gorro, quando ela sai das vistas, fica perdido, e logo alguém terá que procurar. Sempre se acha. Nem sempre de modo fácil. Assim como sua chupeta, de que ela gosta, mas não usa o tempo todo e sempre deixa por aí.
Assim como fazem com ela, também me punham a “roupa da missa”, geralmente aos domingos, e diziam que eu ficava bonito, só era feio usar chupeta. Também não gostava de usar gorro. Eu perguntava pela chupeta, perguntavam-me pelo gorro. “Não sei” era a resposta. Diziam: “Dá três pulinhos e pede pra ‘São Longuinho’, que ele mostra”. Eu pulava mesmo, e as coisas apareciam, como forçosamente apareceriam. Assim, se agia quando sumia alguma coisa.
O papai Noel... Esse, no começo aparecia uma vez por ano. Depois desapareceu e eu não entendia por quê. Continuávamos eu e meus muitos irmãos pondo na janela o sapato, mas, prevendo que “o velho não viria”, os adultos diziam: “Coloca, meu filho. Se o Papai Noel não vier e não lhe deixar um presente, é porque tem muita criança pobre pra atender. Quem sabe, no ano que vem... Ou quem sabe você tá com sorte... O que você queria de Papai Noel?” Pedia alto e o velho não vinha ou vinha trazendo algo diverso do que pedia, mas esperava-o para o ano que viria.
Ensinaram que as coisas sumiam porque um moleque de nome Saci era quem as escondia para brincar ou para castigar. Tinha uma perna só, era traquinas e vivia na floresta, mas vinha para o nosso meio sempre que uma criança xingava, era resmungona ou desobediente, falava “Capeta”, “Diabo”, “Demônio”, etc... (Eram todas razões para desaparecer coisas). Mais grave: “Papai do Céu não gosta”, “Quem é mau não vai pro Céu”, “O inferno é um lugar onde só tem fogo e os maus queimarão pra sempre”
Os anos foram passando, as curiosidades eram outras e fatos novos, antes não percebidos, tinham suas explicações peculiares. Por que o padre não namora? “Não pode, meu filho. A mulher que namora o padre vira mula-sem-cabeça”. E esse homem meio inchado e feio, por que é assim? “Dizem que vira lobisomem, se transforma num animal e anda de quatro patas. Por isso as juntas de seus dedos são inchadas... Ele vira, à noite, e desvira, de dia”
Lembro que gostava da broa assada no fogão à lenha onde também, aproveitando as brasas, eu assava uma mandioca ou uma batata doce. Que delícia! E as noites de São João e de outros santos do inverno, com lua clara e céu estupendo?... Não importava o frio, era tudo bonito. “A bênção, dindinha Lua”. Não respondia, mas pedia mesmo assim, secundando a voz de minha avó. A fogueira ardendo, gente tirando sapatos e meias, para atravessá-la de pés descalços (Que heroísmo!). Ainda hoje não entendo como se dá a coisa, não busquei explicação científica para o fato de que os pés não se queimam. Tinha que ser à meia-noite (hora mágica!). E a variação de hora de relógio para relógio?... Toda hora é relativa. A coisa ficava mesmo sem explicação, salvo que aqueles homens possuíam muita fé.
E assim foi minha infância, adolescência, com reflexos na idade madura. Nunca entendi muito bem todas as coisas. A fé é artigo raro. O papai Noel, esse eu sei, me dava presente o ano inteiro, todo dia, o tempo todo. As crianças pobres são as que mais carecem, ainda hoje, de presentes desse “velhinho”. O céu, o inferno... (?) Na barra das saias de minha mãe ou da minha avó sempre desenvolvi algum credo. Ruim era voltar da “Missa do Galo”, à pé, da Vila, por quatro quilômetros (Que vontade de arriar e dormir ali mesmo no caminho!), mas a missa era bonita. Eu me emocionava com ela, com a saga de Cristo na Semana Santa, que era encenada no velho rádio à pilha. Não via as cenas, mas as tinha na imaginação, ouvia as palavras e chorava. Depois passei a usar a missa também para paquerar. Céu e inferno tomaram novas dimensões e conceitos. A conhecida, que, diziam, namorava o padre, nunca virou mula-sem-cabeça. Nunca vi uma, como não vi lobisomem, mas vi mãos, dedos e pés inchados de cachaça.
Os fatos existem, os mitos, não. Tenho uma enorme responsabilidade de separar mitos, fatos, mostrar pontes e fontes, explicar tanta coisa, eliminar nocividades... Tenho certeza, a própria vida, com tudo em seu bojo, me ajudará a desincumbir da missão. O amor norteará tudo, desde que eu me proponha a ouvir e zelar por tudo pequeno à minha volta. Eu, também pequeno, quem zelará por mim? Há um sopro e uma inspiração e uma dedicação sincera. Que os anjos ajudem a cuidar de anjos! Esses sobraram da minha infância. Penso que ainda estou na infância...
Imagino coisas simples e esqueço-me do mirabolante. O que está além da imaginação eu atropelo e me atropela.
Um dia terei que contar para meus meninos coisas e coisas ou não contar nada. Mesmo que o que conte não seja conto, o silêncio cheio de ações será uma estória exemplificativa de cultura e momentos de uma humanidade retalhada, norteada por acidentes e incidentes de uma vida partida, cuja via para a inteireza é fatigável e não sei onde ou se termina.
quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
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